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Erney Plessmann de Camargo morre aos 87 anos
Presidente da Fundação Conrado Wessel também esteve à frente do CNPq, Instituto Butantan e CTNBio. Foi um dos mais renomados pesquisadores no mundo em malária e doenças negligenciadas
Agência FAPESP – Erney Plessmann de Camargo, presidente da Fundação Conrado Wessel (FCW), morreu na sexta-feira (03/03), em São Paulo, aos 87 anos, em decorrência de complicações de uma cirurgia na coluna. Era reconhecido como um dos principais pesquisadores em malária e doenças negligenciadas no mundo.
Camargo era professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e da Faculdade de Medicina (FM-USP) e professor titular da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi o primeiro pró-reitor de Pesquisa da USP, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), presidente do Instituto Butantan e diretor-presidente da Fundação Butantan.
“Não era apenas um grande pesquisador, reconhecido internacionalmente, mas uma pessoa extremamente gentil e preocupada com os destinos da universidade e do país. Aprendi muito com ele, em especial na transição entre a sua gestão e a minha como presidente do CNPq. Tive a honra de saudá-lo quando recebeu o título de professor emérito da USP", disse Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP.
“Ele era um campeão em tudo o que fazia: em sua especialidade, na gestão de órgãos públicos voltados para a vida acadêmica, na relação com as pessoas, na direção de importantes projetos como pró-reitor de Pesquisa da USP e na direção da Fundação Conrado Wessel, que ele recuperou de uma situação desastrosa, colocando-a novamente no brilho de sua missão e função institucional”, comentou Carlos Vogt, diretor administrativo e coordenador cultural da FCW.
“Erney Plessmann Camargo era grande amigo de meu pai, Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Os dois eram algo parecidos fisicamente, os olhos claros, o bigode e um sorriso irônico que muitas vezes fizeram que os confundissem como irmãos. Erney gostava também de papos intermináveis em torno de um bom whisky: me lembro de alguns, eu menino em Ribeirão Preto, na USP, antes das nuvens sombrias da ditadura militar encobrir o nosso país”, escreveu Luiz Awazu Pereira da Silva em depoimento a título pessoal.
"Erney era [e continuará sendo] um exemplo para todos nós. Brilhante cientista e incansável batalhador pela ciência. Deixa múltiplos legados sob múltiplas formas. Fará muita falta”, disse Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP.
Nascido em 20 de abril de 1935, em Campinas, Camargo formou-se na FM-USP em 1959. No segundo ano do curso, passou a frequentar o Departamento de Parasitologia, liderado por Samuel Pessôa, movido pela paixão pela história natural e pelo fato de que ali “todos eram de esquerda”, como lembrou em entrevista à revista Pesquisa FAPESP em 2013.
Ainda na graduação estudou um pouco a esquistossomose, antes de começar a trabalhar com Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que, na época, preparava sua tese de livre-docência. “Me formei achando que devia aprender um pouco mais de bioquímica e fiz um estágio de dois anos com Sebastião Baeta Henriques, no Instituto Butantan”, ele afirmou na entrevista.
Em 1962, ingressou como auxiliar de ensino no Departamento de Parasitologia. Começou a estudar a bioquímica do Trypanosoma cruzi e acabou por desenvolver um meio de cultura liver infusion tryptose (LIT), que permitiu a produção do protozoário em escala.Foi seu primeiro projeto, entre muitos apoiados pela FAPESP.
Dois anos depois, em 1964, foi cassado pelo Ato Institucional nº 1, junto com Pereira da Silva, Thomas Maack, Pedro Saldanha, entre outros. Camargo lembrou que, nesse período, um “grupo de pessoas” se organizou para coletar dinheiro para os cassados da medicina que tinham ficado sem salário. Pôde então dedicar-se 24 horas por dia ao artigo sobre o LIT – o primeiro de sua carreira –, que foi publicado em 1964 e seguiu entre os mais citados ao longo de toda a sua trajetória acadêmica. Enquanto isso, um Inquérito Policial Militar (IPM) instalado na FM-USP acusava-os formalmente perante o Tribunal Militar, dando início ao processo de julgamento.
“Nesta altura, um pesquisador americano, Walter Plaut, me convidou para ir para Madison, nos Estados Unidos. Fui embora antes do julgamento, no qual todos foram absolvidos”, contou à revista Pesquisa FAPESP. Nos Estados Unidos, teve de interromper a pesquisa com T. cruzi porque o laboratório não permitia estudos com agentes patogênicos. A opção foi estudar um fungo aquático que resultou num artigo de grande impacto e que inspirou sua tese de doutorado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), sob a orientação de José Moura Gonçalves, em 1969.
Voltou para o Brasil junto com Pereira da Silva, quando o governo promoveu um programa de reintegração de cientistas, pouco antes de serem mais uma vez cassados, desta vez pelo AI-5. Sem emprego, Camargo foi trabalhar na Editora Abril, nas revistas Enciclopédia Médica e Medicina e Saúde, e no Instituto Lavoisier. “Vivi uns dois anos assim e ganhei mais do que ganharia em dez anos na academia. Mas eu queria mesmo era voltar para a universidade.”
Antes de voltar à USP, ficou 15 anos na Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Federal do Estado de São Paulo – Unifesp), onde criou o curso de pós-graduação em microbiologia, parasitologia e imunologia. Nesse período também realizou a livre-docência no Departamento de Bioquímica da USP (1979) e o pós-doutoramento no Instituto Pasteur (1984).
A convite de Flavio Fava de Moraes, então diretor do Instituto de Ciências Biomédicas, prestou concurso para voltar à USP. Mais de 200 pessoas ocuparam a plateia e ele reconheceu que foi uma “espécie de desagravo”.
Na USP, ampliou o Departamento de Parasitologia, contratou docentes e equipou laboratório. Rapidamente a produção científica passou de 0,2 artigo por docente por ano para quatro artigos, ele lembrava com orgulho.
Camargo foi pró-reitor de pesquisa da USP entre 1988 e 1993. Foi indicado pelo então reitor José Goldemberg e permaneceu na mesma posição na gestão de Roberto Leal Lobo, até ser convidado para dirigir o Instituto Butantan.
Ainda nos anos 1980, fez um pós-doutorado no Instituto Pasteur, na França, para aprender mais sobre biologia molecular. Sua atenção, na época, estava voltada para doenças parasitárias, mais precisamente a malária, e sobretudo em Rondônia, que registrava um aumento grande na incidência de casos. “Tínhamos que ter um projeto de campo”, concluiu.
Levou a ideia a Pereira da Silva, então no Instituto Pasteur, e o projeto foi iniciado em 1990, bancado em parte pela Organização Mundial da Saúde e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Havia duas coisas a fazer. Uma era entender melhor a epidemiologia da doença e publicamos muitos trabalhos sobre o tema. A segunda era usar a biologia molecular para esclarecer muitos aspectos inexplorados da doença”, detalhou na entrevista à revista Pesquisa FAPESP.
Começaram a trabalhar no Centro de Pesquisa em Medicina Tropical, do governo de Rondônia, em Porto Velho, e montaram serviços de assistência em Monte Negro, no interior do Estado, que funcionava como um “braço oficial” do ICB-USP. E continuavam a produzir ciência e a publicar artigos importantes, sobretudo sobre a malária assintomática.
No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2007, assumiu a presidência do CNPq, período em que colocou on-line a Plataforma Lattes e criou a Plataforma Integrada Carlos Chagas.
Foi presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e da Fundação Zerbini-Incor. Integrou os conselhos superiores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Antonio Prudente, entre outros.
Foi membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Academia Mundial de Ciências (TWAS), da Sociedade Brasileira de Parasitologia, da Sociedade Brasileira de Bioquímica e da Sociedade Brasileira de Protozoologia, entre outras.
Por sua trajetória científico-acadêmica recebeu diversas honrarias, como a Ordem do Ipiranga, no grau Grã-Cruz (2006), a Ordem Nacional do Mérito Científico, nos graus comendador (1998) e Grã-Cruz (2002), o prêmio LAFI de Medicina (1980) e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional de Ingeniería do Peru.
“A comunidade acadêmica do Brasil está de luto. Erney foi um símbolo de cientista, humanista e cidadão, a sua perda nos afeta a todos”, escreveu Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq.